sábado, abril 10, 2004

O Actor


O actor acende a boca. Depois os cabelos. Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor põe e tira a cabeça de búfalo, de veado, de rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela. Bocado janela para fora. Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.

O que rutila, o que arde destacadamente na noite, é o actor, com uma voz pura, monotonamente batida pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca e retira o adjectivo da coisa, a subtileza da forma e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã na sua divagação de maçã. Fabrica peixes mergulhados na própria labareda de peixes. Porque o actor está como a maçã. O actor é um peixe.

Sorri assim o actor contra a face de Deus. Ornamenta Deus com simplicidades silvestres. O actor que subtrai Deus de Deus e dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa a distância de Deus.
Embrulha, desvela.

O actor diz uma palavra inaudível. Reduz a humanidade e o calor da terra à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro. O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.

O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor. Como a unidade do actor.

O actor é um advérbio que ramificou de um substantivo. E o substantivo retorna e gira, e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente do nome. Nome que se murmura em si, e agita, e enlouquece.
O actor é o grande nome cheio de holofotes. O nome que cega. Que sangra. Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo, enche o corpo com melodia, corpo que treme de melodia.

Ninguém ama tão corporalmente como o actor, como o corpo do actor.
Porque o talento é a transformação. O actor transforma a própria acção da transformação.
Solidifica-se. Gasifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto, faz crescer o acto.
O actor actifica-se.

É enorme o actor com sua ossada de base, com suas tantas janelas, as ruas.
O actor com a emotiva publicidade.

Ninguém ama tão publicamente como o actor, como o secreto actor.
Em estado de graça. Em compacto estado de pureza. O actor ama em acção de estrela, acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento de onde brota a pantomima.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama, vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente como é puro.

Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral

O actor em estado geral de graça.

Herberto Helder

Sem comentários: